Dríades e Faunos: Um mergulho no Coração da Floresta
Meu fado chora, mas move montanhas.1 Capicua A obra de Cássio de Vasconcellos [SP, 1965] é um poema de amor à natureza, uma declaração na qual o embate com o real, trazem à luz uma impressão de grande romantismo e pureza, a par de uma louca verdade, prestes a eclodir, onde tudo se revela ao futuro do mundo.2 Numa era de catástrofes, onde prolifera o sentimento que o mundo se encontra à beira de um precipício, Cássio abre uma brecha na vertigem dos tempos, ousando apresentar uma obra para a eternidade, tarefa que à primeira vista parece pertencer ao domínio das estrelas. No caso da Fotografia, esta tem o poder de nos fazer conduzir – ainda que sempre à luz de uma lonjura intransponível – ao reino indeterminado do fascínio, onde não há medidas lógicas de espaço e tempo. Poucos artistas moldaram o escopo da arte contemporânea e influenciaram a fotografia no Brasil mais do que Cássio Vasconcellos. As suas obras sintetizam um novo tipo de subjetividade, associando um imaginário transgressor sobre o próprio lugar da Fotografia, essa arte tão necessária para a urgência dos tempos. O artista vive permanentemente no fio do abismo, em plena vertigem quer no ângulo que escolhe, quer no hibridismo experimental que fazem dotar a sua obra de uma ampla potência significante. Esse limiar do risco afirma o lugar por excelência da arte pois indica o perigo, a brecha que marca a intrusão do infortúnio na beleza perfeita. Em Dríades e Faunos (2019-2020) o fotógrafo apresenta-nos uma profunda imersão num lugar de sonho e fantasia e leva-nos a interrogar sobre a existência de um paraíso perdido, de um planeta em perfeita harmonia. A floresta como parte da natureza, em certa medida, representa o apelo dos seres humanos para retornarem aos valores coletivos e se afastarem da máquina da sociedade de consumo, proporcionando uma pausa para a reflexão sobre o “eu” e o lugar no mundo. Incorporar a grandeza da natureza e do cosmos é uma maneira de buscar respostas para a fragilidade do homem. A viagem faz-se por um mundo onírico, pleno de alusões ao universo da pintura, no qual criaturas mitológicas rompem discretamente o sigilo, permitindo vislumbres do outro mundo – a aparição das dríades e faunos – tal como miragens, pontuam a obra, numa sedução narrativa a transmitir a constância e o espírito do projeto. Neste universo, o emocional predomina sobre o racional e os sentidos são estimulados pelo entrelaçar de uma infinita rede de memórias. Procura-se uma reflexão poética em busca de uma transformação do real, às vezes como sombra, como fugaz escape de um mundo que perdeu peso e adquire a leveza da melancolia. Na vastidão da floresta brasileira, o artista convida-nos para uma sublime dança estética entre a Fotografia e a Pintura, e surpreende-nos com musas e ninfas que habitam o Éden, numa personificação da graça criativa e fecundadora na natureza. Aqui a floresta se define como algo intransponível, uma metáfora para uma transformação pessoal, global e urgente da Terra, na qual o autor busca formas de reconexão entre passado e futuro para repensar o presente. Essas experiências com a floresta simbolizam o mundo obscuro e oculto do inconsciente. O artista explorador contemporâneo é também um poético conquistador: ao apropriar-se de pinturas do sec. XIX, restitui-lhes a condição de imagens autónomas. Corta, escolhe e coleciona, para elaborar uma composição onde as imagens ganham uma nova dimensão estética e uma inserção cultural distinta da sua condição anterior. O autor é anti-ilusionista ao interromper a narrativa, ao mostrar um novo lugar na ausência da memória, abrindo uma brecha no tempo, criando uma interrupção entre os vários tempos. Montados digitalmente, os personagens recortados das telas de pintores como William-Adolphe Bouguereau, Jacques Louis David, Eugene de Blaas, Hippolyte Flandrin, surgem aqui mimetizados na densidade e esplendor da paisagem, o que convoca uma aproximação pictórica da fotografia, e traz, com renovada vitalidade, uma paisagem tão sentimental, quanto trágica. O trabalho de Vasconcellos coloca o espectador em estado de alerta, reclamando dele um olhar lento, consciente e questionador. Por outro lado, a beleza e a magia trazida pelo hibridismo de técnicas e linguagens, converte aquilo que nunca fora vivido em algo presente, unindo amorosamente a Fotografia com a Pintura, num tableau vivant3 em que ambas se entrelaçam num desejo de serem Uma Só: não é só a Fotografia que se assemelha à Pintura, mas também as figuras apropriadas da Pintura se parecem com fotografias. Para almejar a eternidade, qualquer coisa ( “quelque chose” ) tem de acontecer, um certo “estilo de desejo”, como lhe chamou Borges. Cada obra pictórica encerra em si uma potência que a faz parecer um conto, uma crónica completa, com começo, meio e fim, emitindo o seu brilho estelar. Somadas formam uma constelação, um todo sólido e coerente. Nesta coleção de tableaux vivants, o autor questiona de maneira impressionante as ideias de realidade, fotografia, autoria e verdade, explorando a camuflagem em todas as suas camadas. “A verdade é o seu dom de iludir”4 e, diante do deleite que ela nos proporciona, só nos resta fingir que acreditamos para retardar o real. Felizmente, no olhar de Cássio assistimos a uma releitura desapaixonada desse novo pictorialismo, abrindo-se enriquecedores significados estéticos para a Fotografia. No ciclo de mutabilidade, esta coleção promove a compreensão de como o artista lida com a potência do desconhecido, desde o futuro mais desejado ao mais temido. Pela sua mão somos conduzidos para uma galeria submersa que alberga uma coleção de mitos e ficções, gerando um lugar imagético, imperfeito e poético, no qual a natureza explosiva nos espanta e fascina, por ser um lugar de encontro entre a subjetividade do fotógrafo, com as nossas subjetividades. Nós, que podemos ver a imagem e sentir sua materialidade, e que nos deixamos conduzir através da poesia que está no cerne da imagem aurática, na qual a memória é elemento que possibilita a experiência do sublime. Esta travessia, que já havia sido iniciada na Viagem pitoresca pelo Brasil (2015), é baseada na história real das expedições artísticas e científicas (que juntaram nomes como Johann Moritz Rugendas, Jean-Baptiste Debret, Hercules Florence, etc) que ocorreram no Brasil durante o século XIX, em que arte e ciência se aliaram numa missão de mapear o território brasileiro e mostrá-lo ao velho mundo. E com isso, o Brasil foi um dos poucos países da América a ter um registro tão rico e instigante, ora retratado como um paraíso, por vezes belo e fascinante, outras vezes temeroso e sublime. A Fotografia configurava-se à época, como uma ferramenta científica indispensável no registo objetivo das formas e fisionomias da natureza tropical. Defensor de um novo léxico fotográfico, Vasconcellos contesta a Fotografia como um documento, e faz de cada imagem a chave de outra imagem. Deste modo, embora rendendo homenagem ao seu tataravô, o botânico Ludwig Riedel, que fez parte da expedição Langsdorff (1825), lança-se numa ousada aventura arqueológica em busca de respostas pelo presente, escavando as camadas do imaginário que se foram sobrepondo ao longo da história. Ao artista cabe provocar sobressaltos na linguagem – envenená-la e questioná-la, em busca do erro que poeticamente representa o mistério do tempo. Romântica e intensa, esta série comprova a dimensão da obra tal como uma travessia obsessiva num jogo entre tempos e espaços. É neste gesto de liberdade que o autor nos convida a mirar com familiaridade a mesma árvore milenar evocada pelo pintor Debret de há 200 anos e coloca-nos perante o enigma de decifrar o mistério que nela se esconde, ao revelar com intimidade a distância das coisas, olhando-as nos olhos, até a lonjura desvanecer. Nesta fábula, figuras da natureza simultaneamente humana e abstrata, presentes e ficcionais, reconhecíveis e transcendentes, aparecem num elogio da instabilidade do mundo. Na exuberância da floresta, entre pedras e cascatas, o autor nos lembra que as dríades e faunos nascidos da seiva das árvores, são metáforas da mais pura relação umbilical com a natureza, de tal modo que se a árvore morre, também elas sucumbem. É através destas metamorfoses que, num golpe de genialidade, o fotógrafo nos conduz para o umbigo do mundo, para nos arrepiar com o grito mudo de uma Terra em ferida. Há aqui uma inquietação a atravessar-lhe o coração, como se ele e o mundo pudessem ser uma narrativa para partir de vez, para o mais justo coração da humanidade. Talvez seja este o grande momento de resistência poética e silenciosa, que interrompendo o ciclo vertiginoso dos tempos, nos ajude a enfrentar a vastidão e o caos do mundo. Ângela Berlinde Artista, Curadora e Pesquisadora em Pós Doutoramento em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atua no domínio de investigação sobre as formas híbridas da fotografia. É portuguesa e vive entre Portugal e Brasil. 1Faz parte da letra da canção “Passiflora” do álbum “Madrepérola” da artista hip-hop portuguesa Capicua, com beat de Stereossauro e refrão do fadista Camané. 2Um romantismo, que é vivido ao mesmo tempo como um direito a estar apaixonado e, como dificuldade de estar no mundo, em relação com o real. Roland Barthes – “A crise do desejo”, in O Grão da Voz. Lisboa: Edições 70, 1982. 3Tableau vivant (pintura viva) é uma expressão francesa para definir a representação por um grupo de atores ou modelos de uma obra pictórica preexistente ou inédita 4Caetano Veloso. “Dom de Iludir” (1988), no álbum Live in Bahia, 2002.Sobre a série Dríades e Faunos
Dríades e Faunos (2019-2020), série cujo nome também dá título à exposição, é um desdobramento da pesquisa iniciada em 2015 com Viagem pitoresca pelo Brasil (2015 – atual), baseada nas expedições artísticas e científicas que ocorreram no Brasil durante o século XIX. Esses empreendimentos reuniam artistas e cientistas de diferentes especialidades com o objetivo de percorrer e se embrenhar em nosso território, ainda pouco conhecido na época, a fim de explorá-lo e mapeá-lo.
A expedição Langsdorff, de 1825, por exemplo, trazia em sua comitiva o botânico Ludwig Riedel, tataravô de Vasconcellos. Esse elo pode nos sugerir um fascinío, herdado no âmbito familiar, pelo mistério da natureza como motivo, o que talvez tenha levado o fotógrafo a se interrogar sobre a impressão que a vastidão das nossas matas produziu nos artistas e cientistas daquela época. Mais do que alcançar o mesmo resultado das imagens do período, ele busca um efeito similar. Para isso, ele altera a sensibilidade e o intervalo de exposição da câmera para produzir uma fotografia que também será editada digitalmente.
Nas imagens capturadas, pode-se observar a exuberância das florestas brasileiras, em especial da Mata Atlântica, que permeia a costa leste brasileira e, principalmente, a região sudeste. O público irá se deparar com paisagens que compõem o cenário da cidade do Rio de Janeiro e seus arredores, tais como a Floresta da Tijuca, a Serra dos Órgãos e o Parque Nacional do Itatiaia, assim como de outros lugares do país. Muitas das viagens realizadas por Vasconcellos para capturar as imagens foram feitas em companhia do seu amigo, o botânico Ricardo Cardim. Inclusive, foi o pesquisador que sugeriu o nome Dryads para a série que começou a surgir no ano passado.
O nome tem origem na mitologia grega, em que as Dryads, ou Dríades, em português, são divindades que nascem junto a uma árvore, passando a viver nela, ou em seus arredores. A vida de ambas estaria entrelaçada de tal modo que, se a árvore morresse, o mesmo acontecia com a entidade. Cardim, ao observar que nas paisagens de Vasconcellos também habitavam figuras de nus femininos em harmonia, logo se lembrou da lenda. Quando passou a acrescentar também figuras masculinas, o fotógrafo recorreu a outra referência proveniente do mesmo imaginário, os Faunos.
As figuras humanas que habitam as composições de cenas idílicas de Vasconcellos foram retiradas de pinturas acadêmicas do século XIX de autoria de mestres como Jacques Louis David, William Adolphe Bouguereau e Jean-Baptiste Camille Corot. Essa é a primeira vez que o fotógrafo se apropria de imagens de outros artistas para criar seu trabalho. Reitera-se, com esse gesto, a relação entre pintura e fotografia, ali aproximadas: não é só a fotografia que se assemelha à pintura, pelo seu tratamento, mas também as figuras retiradas dos quadros se parecem com fotos.
Os nus foram eleitos enquanto forma atemporal de representação do corpo, pois não apresentam roupas que possam marcar uma época ou classe social. Vasconcellos busca instaurar um tempo em suspensão em que possa se sobressair a relação do indivíduo com a natureza, a procura por um certo equilíbrio harmônico entre ambos. A atmosfera romântica das imagens não deixa de nos remeter, ainda que indiretamente, as discussões sobre o impacto ecológico humano, tendo em vista a série de catástrofes com as quais nos deparamos atualmente.